Do Baú do Mello, "A Metáfora de Drácula", conto que deu nome a meu primeiro livro



Da época da publicação do livro (1982) pra cá, pouco mudou, mas alguma coisa melhorou. Já não existem mais os infames bancos de sangue, que pagavam pelo sangue dos pobres para abastecer os hospitais.

A Metáfora de Drácula

in A Metáfora de Drácula, de Antonio Carlos de Mello, Livraria José Olympio Editora, 1982

MESMO DEPOIS DO LANCHE, O copo de leite, ela não se sente bem, a cabeça como se com o peso do mundo. O coração, desses de bolero, batendo desesperado. Palpitações. Vertigem. As pálpebras pesando. Um mal-estar geral, como se tudo estivesse desabando ali, com ela, no banco de sangue.

De repente, louca, a impressão (falsa?) de vê-lo novamente. Num canto, como sempre, todo de preto, quase como se escondido, olhando por sobre o ombro com seu olhar tímido. Ela resolve levantar-se, ir até ele. Mas sente-se tão mal. . . Ele sorri para ela. Um sorriso de lado, caninos proeminentes, rosto pálido, olhar violeta.

Não era a primeira vez que o via. Em várias outras vezes, ela doando sangue, ele, ao fim do lanche dela, aparecia sua presença pálida, mágica, enigmática. Aparecia e sumia, quase uma miragem, quando ela menos esperava.

Mas, antes, sempre, olhares. Olhares que prometiam não o comum, corriqueiro, mas um enigma, decifra-me. No entanto, esse olhar nunca foi correspondido - ela se enchia de medo.

Quando ele saía, pensava em ir atrás. Mas nunca. Por algum motivo acabava ficando sentada, paralisada. No fim, imaginava (belisco-me?) se o havia visto realmente.

Mas, agora, mais uma vez, ele está ali (ou não está?) à sua frente.

Novamente repetindo os mesmos gestos, o mesmo sorriso de caninos, o rosto de lado, enviesado por cima do ombro, o olhar violeta convidativo. O coração (como resistir?) disparado, ela já não sabe se por mal alimentada, pelo pouco sangue, ou se por ele, sua presença...

Mas, dessa vez, descobre tudo. O enigma, decifra- o. Ou. .. Não importa, resolve: hoje, ele saindo, sai com ele. Sente-se mal e não quer ir pra casa. O menino, pode ficar tranquila, com dona Firmina. Qualquer coisa pega ele: "Menino! Vem cá, moleque!" bate nele. A ela ele obedece. Tem mesmo medo de dona Firmina.

Uma voz:
- Tá sentindo bem não?
Ela, meio confusa, procurando a boca da voz, vê, nublado, um rosto gordo e negro a seu lado. Que segue:
- Tá sentindo mal? Tá branca. . .
Ela procura, olhos pesados, por ele. Que sumiu. Responde:
- Não, tô mais ou menos. Já passa. Tô melhor. Isso dito assim, picadinho, solto como cocô de cabra, aos poucos. E a outra se aquieta. Ela, então, olhando a porta, consegue vê-lo novamente. Mais um sorriso e o olhar final, o mais convidativo. Logo, sai. Agora, ela sabe, ou sai com ele ou fica só.


O mal-estar aumenta, sente-se zonza, os olhos pesando, o corpo gelado e suando. E, de repente, a doce sensação, a maravilhosa impressão de levantar-se e ir atrás dele. Pela primeira vez, a coragem necessária, o coração batendo, agora sim, por aquele amor doido.

Na rua, ele a espera. Mal ela surge, ele segue. Ela, atrás. Na estação do bonde, coisa tão estranha, as pessoas falando, as bocas mexendo, as línguas também, mas ela não ouve nada. Dele, vêm o olhar violeta, o sorriso de caninos.

Quando percebe, o bonde está à sua frente, parado; e ele, nele. Mal ela entra, o motorneiro dá a partida. Como se a esperasse. É essa a sensação, tudo funcionando como numa engrenagem.

O condutor, em sua habilidade, aproxima-se. Estranhamente, ela não tem ímpeto algum de procurar dinheiro. Mal se lembra mesmo de ter bolsa, bolso. Essa viagem, não paga. Qualquer coisa, pensa, desce andando - quanto tempo... Além do mais, não sabe por que, tem absoluta certeza de que esta viagem é gratuita, o condutor. . . Essa, agora: se olha com mais cuidado, nem vê condutor, e ri de tudo, um riso que vem de dentro.

Mas, novamente, vem um medo. Um medo dele, três bancos à sua frente. Ela olha Santa Teresa, as curvas, casas, e às vezes chove, às vezes não. Mas o que ela estranha não é o tempo mas a nuca dele, muito branca, muito fina. As mãos, no encosto, como a nuca, brancas, finas. Educação de príncipe com certeza. Melhores colégios. Dinheiro.

Lembra-se do filho, coisa mais louca. E, por isso, olhando a nuca e as
mãos daquele homem à sua frente, pensa, encantada, que, além do amor, há o dinheiro. Colégio para o menino que já chega aos sete.

De repente, a seu lado, porque cutucada, percebe uma passageira negra, gorda:
- Moça, num é melhor chamar um médico?
- O quê?
Ela olha incrédula, aquele rosto; o mesmo que estava a seu lado no banco de sangue. Automaticamente, responde que está bem, não precisa se preocupar. E torna a olhar para a frente procurando por ele.

Em pé no estribo do bonde. Quando percebe que ela o olha, desce, ágil. O bonde andando. A ladeira lenta. . . Ela, num ímpeto, levanta-se. Resolve agradecer ao motorneiro, mas, olhando para onde ele deveria estar, vê apenas um gato, um gato cinzento, que pula para um dos bancos, mia e salta os estribos ganhando as ruas. Ela, então, faz o mesmo. Desce, e o chão parece fofo demais, faz cócegas nos pés. Ela tem vontade de rir, rir muito, rir, rir, rir rir.
Mas, apenas, acelera o passo, recupera tempo. Ou o perde, que ele anda rápido agora - com pequenas olhadinhas para trás.

Será que se arrependeu?, ela pensa.

Já no alto da ladeira. Casa, apenas uma. O mato crescendo em volta em verde desalinho. Uma casa como se abandonada no tempo, antiga, tão grande. Bonita como se de um filme. Podia mesmo imaginar histórias.

No grande portão de ferro, ele para. Mexe no bolso, no cabelo bem penteado. O olhar por sobre o ombro procurando-a. Ela: do outro lado da rua. Rija. Tem medo, indecisa. Desde o marido morto, nunca mais outro homem. Mas, dentro, o coração querendo o risco.
Agora, o sorriso de caninos, convidativo. Logo, o portão aberto, passos rápidos, ausência.

Do outro lado, ela se sente zonza, bambeia, senta-se. Atrás dela, uma parede (mas, como, se só havia mato?). Sente-se mal, como se dentro de um pesadelo (sonho?). Acima de sua cabeça, uma placa, Banco de Sangue. E, colado, um cartaz, campanha para doadores: Hoje os hospitais precisam de sangue. Amanhã pode ser você.

Pensa que já está ali sentada há um tempo. Precisa decidir-se.
E ele, aparecendo na janela do segundo andar da casa, decide por ela. Irá. Não há nada a perder. A não ser ele, que desaparece.

Ela, então, em frente ao portão - imenso, grades de ferro pesadas. Numa mágica, move-se, aberto. Ela, estupefata. Sua primeira reação, dois passos atrás, numa defesa. Logo, acalma-se. Que deve entrar, pensa, seguir o corredor à sua frente.

Igual a filme de terror, o corredor é comprido, sinistro, tendo ao fundo uma porta que, como se esperasse por seu olhar, repentina como antes o portão, numa mágica, abre-se, chama-a. .

Chegando à porta, um susto grande: duas galinhas, pescoços depenados e quebrados, abandonadas no ladrilho branco, respingado de sangue, mortas. Olhando para a direita, reconhece-o, sentando, avental no colo (sujo de sangue), comendo, voraz, algo parecido com uma sopa.

- Servida?
A primeira coisa que lhe passa pela cabeça é sair dali, ir embora. Que é uma loucura isso tudo.
- É molho pardo. Galinha eu não gosto. Mas o molho. . .
Ela não sabe com o que está mais surpresa. As palavras fogem pela boca:
- Sangue!?
Ele, na sua natureza:
- Sangue... molho pardo... como preferir. Ela, os olhos nas duas galinhas mortas:
- Mas, e as galinhas?
- Eu não como carne. A não ser que você. . . Esteja à vontade. Eu tenho nojo.

Sem saber por que, quando percebe, está deitada, tudo rodando à sua volta. Sente que passou um tempo. Um minuto, dia, quanto? Pisca os olhos, tenta, em meio àquela névoa à sua frente, enxergá-lo. Procura o branco de sua nuca, dos dedos longos e finos. Vê apenas o sol com seus raios de luz faiscantes, transformando, dentro de seus olhos imediatamente fechados, tudo em fundo negro com bolas (bolhas?) vermelhas, transparentes.

A voz dele, sensual:
- Você tem umas pernas lindas, roliças. . .

Ela, abrindo os olhos, percebe seu vestido dobrado, a calcinha aparecendo - sua pior calcinha. .. Num impulso, tenta arrumar-se. Mas sente-se fraca. Pensa, então: dele mesmo, a voz? E, levantando os olhos, torna a vê-lo, ainda na sopa, molho pardo, sangue. Torna a vê-lo e sente um só tremor, fundo, no coração. Que as pernas eram lindas, ele disse. Arrumar o vestido, pra quê?, pensa. E pensa mais: não terá ouvido mal? Anda embaralhando tudo, nunca esteve assim, tão ausente.
E as palavras saem meio bêbadas:

- O que foi que você falou? E ele, enigmático:
- Minha casa, se acha que é bonita.
O que dizer?
- É grande. Deve dar trabalho limpar, fazer faxina nela toda.
A cabeça pesa, os olhos fecham. Bolhas, como pulgas transparentes, saltando lá dentro, no corredor escuro dos olhos fechados.
- Um peito muito gostoso você deve ter.
A voz dele é um vento frio, arrepia-a. Tenta abrir os olhos, um sorriso. Mas a boca ainda duvida:
- O quê?
- Perguntei o que é que você faz.
- Como assim?
- Se trabalha, se é casada...
- Viúva.
Ele, com frases na ponta da língua:
- Tão nova. Há muito tempo? Que tragédia. Tem filhos?
- Um menino. Chama F.
- F.? Que nome bonito. E o seu?
O sorriso de caninos mal disfarçando o mal-estar.
- M.
- M. M. também é bonito.
Há um silêncio, constrangimento. Ela pensa: no que faz ali; em ir embora; no filho.
- O meu é Drácula. Gosta? Ela estranha:
- Draque?!
- Drácula. Drá-cu-Ia. Nunca ouviu falar?
- Nunca.
E, como se significasse alguma coisa, ele:
- Ótimo. Assim está bem. Sou o único.

O corpo balança. Ela sente que mexem em seu ombro, mãos que a apalpam, vozes longínquas. Pisca os olhos, tem medo de estar ficando louca e ânsias de vômito.

- Viúva. .. Deve estar louca por... Muito tempo que não. .. Eu tenho vontade
de chupá-Ia.
Cada palavra dessas, uma carícia. Com elas, o bem-estar, mas também a dúvida:
- O quê?
- Se ele a deixou em boa situação.
Nada do que ela esperava. Mais uma vez.
- Meu marido?
Ele faz que sim com a cabeça. Logo depois, arrepende-se:
- O ex-marido.
- Uma miséria. Era vigia. Pensão que num dá nem pra comer. Tenho vergonha de... Não, vergonha coisa nenhuma! Muitas vezes já passei fome. Quando muito, um pão, assim, de manhã, e mais nada.

Ele apenas observa. No que pensa?, ela pensa. Será que deveria ter dito isto? Medo.
Tentando, em sua ingenuidade, melhorar:
- Às vezes, um café ralo. . . Agora, com toda a coragem:
- Por isso é que eu vou lá no banco, preciso.
Ele, assustado, saltando da cadeira, um bicho tenso:
- Banco?!
- É, o banco de sangue. Lá dão um lanche. E também o dinheiro. Num é nada, num é nada, com ele é que eu me viro.
Ele, lê-se no rosto, transtornado, desiludido:
- Pensei que fosse por. . . Eu pensei que. . . Ela, preocupada:
- O quê? Que foi que eu disse?
Ele, sentando-se, sentido e quase chorão, um menino contrariado:
- Pensei que você gostasse. Que fosse lá, não pelo dinheiro mas pelo prazer de ter seu sangue... ahn...uhn. . . doado.
Ela ri, indicador enrolando os cabelos, um cacho:
- Prazer?! Tá brincando comigo. . .
Ele, não querendo acreditar:
- Eu sempre a via. . . quase que diariamente. . . Pensei que. .. Mas vejo que não, que me enganei.
Ela, ainda no cacho, faceira, não entendendo:
- Enganou, com o quê? Seco:
- Nada, nada. . .
Ingênua:
- É mais por causa do menino, você sabe, criança, se a gente tem. . . Porque eu penso assim, num deixo largado por aí, não. . .

E, de repente, tudo gira, ela sente que tudo está confuso, a voz dele parecendo mil vozes, ecos, todo mundo falando ao mesmo tempo, e o sol, o sol batendo forte, lançando chamas em seus olhos, pontas de fogo, o sol...

- Eu seria atrevido se dissesse que gostei de você desde a primeira vez em que a vi?
Ele sabe como falar, que palavras usar. O mal-estar, como num encanto, cessa. O coração dela não mais resiste. E resistir, pra quê, se a solidão de viúva chega ao fim, se o colégio para o filho. . .
A voz:
- M., estou apaixonado por você. Doidamente. Completamente.
Ela não sabe o que fazer, sensação tão boa. Parece que delira. Tenta abrir os olhos, mas há o sol, o sol lançando raios. . .
Sol que some. Tudo negro. E ela, então, pode vê-lo: sentado, ainda na sopa.
- Eu tô entendendo bem? Que foi que você disse? E ele, um punhal:
- Você quer trabalhar aqui pra mim? Toda a distância entre os dois. . .
- Pode trazer o menino, a casa tem tantos quartos. . . Ela, refazendo-se, pensando no filho, mordendo as palavras, doída:
- Trabalho, de quê?
Ele, com uma formalidade de patrão:
- Todo o serviço. Lavar, passar, cozinhar, arrumar. Em troca, casa, comida
(pra você e pro seu filho) e. . .
Raios apertam seus olhos. Ela pensa que está morrendo, o coração dando pequenos saltos sem ritmo - um pião que, depois de muito girar, exausto, bambeia, bambeia cada vez mais, já não se agüenta, cairá.
Num esforço, ela volta os olhos pra ele. E estranha seus gestos, como se algo se repetisse:
Ele, com uma formalidade de patrão:
- É, todo o serviço. Lavar, passar, cozinhar, arrumar. Em troca, casa, comida (pra você e pro seu filho) e...
Ela não sabe, coração ferido, o que pensar. Ele prossegue:
- ... quanto é mesmo um salário mínimo? Quanto? Eu dobro. Casa, comida e dois mínimos.
Levanta-se, paternal. Pela primeira vez, um carinho: rápida, a mão nos cabelos dela.

Uma voz, em meio a outras:
- Peraí, gente, dá espaço aí, colabora, dá espaço pra ela poder respirar. (Respirar?). Quando percebe, está no quintal, escuro, da casa, as duas galinhas mortas na mão. Não sabe por que, chama um nome, Lobo, duas vezes.
E um lobo imenso sai por uma porta baixa, estreita, feroz em cima das galinhas, despedaçando-as, devorando-as e rosnando, enquanto ela, assustada, sem compreender, olhos esbugalhados, grita por Drácula.
Que aparece, aos berros:
- M., eu avisei a você! É burra?! Dê a comida daqui, do lado de fora!
Falando assim com ela, aos esporros. Tudo em nada. Todo dia a mesma rotina, o pó da casa pra espanar, regador nas plantas, a comida de Lobo (às vezes, animais vivos)... Vida vã, o filho nem no colégio. . .
- Colégio, pra quê? Novo ainda. Ano que vem, eu coloco, palavra. Ele ainda está na idade de aproveitar a vida, M.
Ela: que sim com a cabeça.
O menino aproveitando a vida: todo dia ao aviário apanhar galinhas; pela manhã, uma graxa nos sapatos de Drácula; brincar, só pelo quintal da casa, correr em círculo, catar formiga, passar o tempo.
F., com seus motivos, não gosta dele. Esperto que era, até desobediente, vive chorão, atrás das saias dela, um medo imenso de Drácula. Vendo-o, enrosca-se nas pernas dela, geme, murmura, corre. No pescoço, como pequenos sinais, dois buraquinhos, feridinhas que nunca cicatrizam. . .
- Mãe, vamos embora daqui.

Mas Drácula parecia adivinhar: nesses dias, bombons pra ela e pro menino, dois, Sonho de Valsa. E mais:
- O dinheiro, fique tranquila, depois de amanhã. . .
Feliz:
- Tudo de uma vez!? Quanto?

Ele diz uma mixaria. Que o dinheiro vai sair (após meses, anos, quanto?), mesmo não tendo entrado, pois atravessa grave crise financeira. .. Mas vai sair descontado: tanto do vidro da janela que F. quebrou; tanto de médico pra sarar a mão do menino que, na falta de algo pra fazer, infantil, quis brincar com Lobo; tanto de isso e de aquilo; até os Sonho de Valsa. . .

Um dia, por causa de F., resolve ir embora. Os olhos de Drácula molham-se, tristes. Lágrimas escorrem, gota, gotas.
- Por quê?
E ela, o coração na mão, responde que o ama, sempre o amou, e ele sempre abusou dela, se aproveitou mesmo disso, nunca cumprindo o prometido, obrigando-a a trabalhar dia e noite; e que, além do mais, o pior de tudo, ele não gosta de F., nunca gostou. . .

De repente (e ela bem que tenta proteger-se, mas não tem forças), sente que abrem seu vestido, rasgando-o a partir do pescoço. Ouve, lívida, vozes, descargas de automóveis. .. Abre um pouco os olhos, para logo fechá-Ios: o sol...

Ouve-o, ao mesmo tempo em que se aproxima, apaixonado, como num filme imaginário, entre beijos:
- Nunca, M., nunca! Você não vai me abandonar. Eu não vou deixar, meu amor! Casaremos. Você ficará para sempre aqui comigo. Prometo tratar de F. como se fosse meu próprio filho e...
Ela não quer saber de mais nada. O coração tem seus mistérios. . . Era tudo o que queria ouvir. Com a ponta dos dedos cerra seus lábios, os de Drácula, lábios pálidos. Apaixonada, aceita ficar. Por ele, tudo, e para sempre. O filho, ela fala com ele.
E Drácula, as mãos alvas nas dela:
- Depois de amanhã nos casamos, M., depois de amanhã. . .

Estranha o que sente agora: um vento no rosto, intermitente. Com muito esforço, abrindo um pouco os olhos, vê um pano, um pano que vai pra cima e pra baixo, lento, lentíssimo, um pano azul, vupt-vupt, pra cima e pra baixo, o sol batendo no rosto quando ele abaixa, sumindo quando levanta, e sempre o ventinho, uma coisa agradável, o ventinho no rosto, uma coisa tão boa!

Logo, uma correria louca, como se numa montanha russa, dentro de sua cabeça. Tempo atropelado por fatos, restando, apenas, as promessas de Drácula: intocadas, repetidas (falsas?)... A de casamento, como antes as de pagamento, nunca cumprida, "depois de amanhã". . .

Agora, sente que está deitada numa cama macia. Quase sem força entre lençóis bordados (noite de núpcias?). Ouve uma voz, um murmúrio doce em seu ouvido, Drácula:
- Amor, hoje vou pedir uma coisa a você, uma coisa que eu nunca pedi. . .
E segue dizendo, entre carícias e luzes indiretas, mão nos cabelos dela, aquela mão de dedos longos, sua mão alvíssima:
- ...uma coisa que você não faz há muito, muito tempo... Por fim, lambendo-lhe a orelha:
- ...seu sangue. Você sabe que eu gosto.

(Como resistir?). Ela aceita. Um pouquinho, e sendo pra ele, não faz mal.
Pergunta como pretende, ingênua. Ele aproxima, guloso, os caninos de seu pescoço.
Ela, como se houvesse em seu corpo milhões de formigas, adormecidos os músculos, nada sente, a princípio. Mas, logo, tem a certeza (de onde vinda?.) de que está sendo sugada, de que seu corpo, cada vez mais fraco. . . E aqueles dentes em seu pescoço. . .
- Amor, assim eu morro.
Mas Drácula está surdo. Ela, com as mãos, tenta empurrá-lo, mas ele está invisível. Mesmo que abra os olhos com toda força, não o vê mais. Nessas horas, o que vê é um pano azul, lentíssimo, um pano azul que balança e solta um vento fresco em seu rosto, um vento, uma coisa quase santa, mística. . .

Não sabe por que (o vento?), tem certeza de que está morrendo. Rapidamente, ela pensa no filho. Tenta gritar seu nome. Mas não tem forças. Imagina-o, menino, sem ela, já que morre. Nu destino. . .

E assim, com esses pensamentos, morre. Morre, e uma inútil camisa azul segue balançando, tentando um ar para que respire. Morre, e a multidão, ainda imaginando-a viva, pensa na ambulância que não chega, pergunta se não há médico algum no banco de sangue.

- Logo na hora que ela entrou, já vi que ela tava mal. Depois então que deu sangue. . .

Se a gente procura a dona da voz, reconhece, negra e gorda, a companheira de M. Companheira de tudo, e desconhecida. .. O rosto suado, o sol inclemente, sua voz, a realidade:

- Logo na hora que ela entrou, já vi que ela tava mal. Depois então que deu sangue, parece que piorou. Ficou sentada, meio abobada. Duas ou três vezes perguntei se tava sentindo bem, e ela disse que sim. Depois levantou e foi apoiando na parede, mal mesmo, tonta que nem se tivesse bebido. Saiu e veio cair aqui fora. Tudo isso assim, num tem nem meia hora. Quinze minutos, se tanto. Agora, taí, coitada... Ainda rasgaram o vestido dela, o porteiro da casa - disse que pra ela respirar, que ela precisava de ar, de ar...



Madame Flaubert, de Antonio Mello