Retrato do Brasil apura Satiagraha e descobre furos de Protógenes e Trallicomédia de erros no Jornal Nacional

Está na Revista Retrato do Brasil (por enquanto só nas bancas e aqui no blog) uma reportagem de Raimundo Pereira, um dos jornalistas mais respeitados do país, editor dos históricos Opinião e Movimento e autor da matéria que tanto incomodou a Rede Globo, em 2006, com a denúncia da armação do delegado Bruno com repórteres (leia aquela reportagem aqui). (Clique aqui para descobrir como comprar a Retrato do Brasil).

Pereira se debruçou sobre milhares de páginas dos autos da Satiagraha e descobriu inconsistências e erros grosseiros do delegado Protógenes e sua equipe e de uma matéria de César Tralli exibida no Jornal Nacional.

Protógenes

Um erro de Protógenes e equipe está na interpretação de um dos trechos de transcrições de áudios gravados pela PF e que constam dos autos:

Nela está registrado um diálogo entre Braz e um tal de “Giba”, no qual se fala sobre certa Andréa, um “ele” não identificado e uma misteriosa “Conta do Curral”.

Nos autos do processo, os investigadores sugerem que Giba é Gilberto Carvalho, o chefe do gabinete do presidente Lula. Andréa seria Andréa Michael, da Folha. O “ele” poderia ser José Dirceu, o ex-chefe da Casa Civil de Lula. E “Conta Curral” seria um pagamento ilícito no exterior.

Raimundo Pereira pesquisou e conta o que descobriu:

O repórter investigou. Conheceu “Andréa”, que não é a repórter da Folha, mas Andréa de Oliveira e Souza, secretária de Braz há sete anos.
“Giba” é Gilberto Massarente, que trabalha com Braz desde 1990, quando ele era executivo da Andrade Gutierrez.
“Conta do Curral” é, de fato, uma má transcrição e um delírio de teoria conspiratória: na gravação ouve-se Ponta do Curral, um empreendimento imobiliário na Bahia, entre Valença e Guaibim, que está sendo tocado por Dantas, Braz e Massarente com a ajuda do “ele”, um agrônomo que cuida da aprovação dos planos de manejo do terreno pelos órgãos ambientais.

A reportagem sobre a Satiagraha no Jornal Nacional

Esse desprezo por fatos claramente relevantes tem um exemplo especial no Jornal Nacional que foi ao ar no dia 14, um dia depois que Braz se entregou à PF. O jornal é apresentado por Renato Machado, que anuncia a reportagem de César Tralli.

Machado diz, na abertura: “Exclusivo: gravações de conversas telefônicas feitas Polícia Federal revelam como dois investigados na Operação Satiagraha tentaram corromper um delegado para livrar o banqueiro Daniel Dantas das acusações de crime financeiro e de lavagem de dinheiro”.

Ele se refere à novidade – a prisão de Braz – e passa o comando da matéria para César Tralli, o mesmo repórter de tantos outros furos da Globo a partir de ações da PF. Tralli recebeu, de modo privilegiado, por exemplo, as imagens do dinheiro apreendido no caso dos chamados “aloprados” do Partido dos Trabalhadores, feitas irregularmente por um delegado da PF e exibidas pela Globo na véspera do primeiro turno da eleição presidencial de 2006.

Tralli, que foi o apresentador das imagens também exclusivas da prisão de Dantas e seus executivos, no dia 8 de julho, fala em off, e as imagens se sucedem. Mostram, aparentemente, um presídio à frente de outro, no meio uma avenida movimentada. “É nesta cadeia, em Guarulhos, na Grande São Paulo, que está preso Humberto José da Rocha Braz”, diz o repórter. Na tela aparece foto 3x4 de Braz, depois, um prédio, à noite, com o nome Polícia Federal. E Tralli diz, em off, que Humberto “se entregou ontem à noite na sede da Polícia Federal”.

A seguir, surge a imagem já citada, do jantar de Braz, Chicaroni e Ferreira no El Tranvia. Braz, de costas para a câmera; Ferreira, meio encoberto, sentado à frente de Braz. E Chicaroni, também de frente para a câmera, à direita. Tralli narra, em off: “Humberto e o amigo Hugo Chicaroni, professor universitário, foram flagrados em encontros e telefonemas oferecendo propina para um delegado federal. Toda a negociação foi monitorada com autorização da Justiça”.

Começam a aparecer painéis na tela, um em cima, outro embaixo, com duas fotos, escuras, irreconhecíveis, com as legendas “delegado” e “Hugo Chicaroni”. Nos painéis, aparecem textos que reproduzem o que dizem as vozes associadas a cada figura.

Tralli continua, em off. Diz que a gravação é exclusiva e que “Hugo Chicaroni e Humberto Braz tentam manipular a investigação, segundo a polícia”. O repórter da Globo diz que o objetivo dos dois é “deixar de fora o banqueiro Daniel Dantas e parentes dele. É o que indicam as gravações”.

No letreiro correspondente a Chicaroni, surge a frase “A história de só livrar três tá bom”. A seguir, outra: “Tá ótimo”. As frases parecem pronunciadas por vozes diferentes, mas a edição da matéria não parece se preocupar com esses detalhes.

A seguir, mais imagens gravadas no El Tranvia. Depois, por 32 segundos, são exibidas imagens de fachadas e vistas do prédio da Justiça Federal e do Fórum, de São Paulo, e do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, de Brasília. Tralli, em off, começa dizendo: “As interceptações mostram que, segundo Chicaroni, o banqueiro estava preocupado com a Justiça Federal em São Paulo”. Nos painéis e no áudio, Chicaroni diz: “Ele resolve. STJ, STF... ele resolve. O cara tem trânsito político ferrado”. E Tralli conclui: “Hugo Chicaroni se refere ao STJ, Superior Tribunal de Justiça, e ao STF, Supremo Tribunal Federal, as mais altas cortes do judiciário brasileiro”.

Novamente, a cena do El Tranvia. Voz de Tralli, em off: “As conversas também falam em propina. Hugo transmite ao delegado a oferta de suborno, proposta, segundo ele, por Daniel Dantas e oferecida por Humberto Braz, o assessor do banqueiro”. A seguir, voltam os painéis, com a transcrição da fala de Chicaroni, ao fundo: “Ele falou: Eu tenho 500 mil dólares para tratar desse assunto”. Depois, fala o delegado: “500 mil?” E, de novo, Chicaroni: “É. 500 mil dólares”. E, em seguida, imagens de maços de notas de 50 reais.

Tralli aparece ao vivo, pela primeira vez, após 3 minutos e 15 segundos de reportagem. Diz: “Além do pagamento em parcelas, o valor do suborno dobrou de 500 para 1 milhão de dólares. É o que apontam as gravações de um segundo encontro aqui, em São Paulo, entre os dois homens que diziam representar Daniel Dantas e o delegado federal. Foi nessa mesma segunda conversa que o delegado Vitor Hugo Rodrigues Alves [Ferreira] apresentou documentos sobre o banqueiro. Fichas cadastrais e fotos de Dantas foram exibidas durante um almoço em que o assunto era a propina”.

Retornam as imagens dos três homens no restaurante. Braz, que estava ao lado de Ferreira, levanta-se e troca de lugar com Chicaroni. Tralli diz, em off: “As imagens mostram o exato momento em que Humberto Braz, de frente para a câmera, troca de lugar com Hugo Chicaroni, para analisar melhor os documentos. O delegado não tem pressa”.

Ouve-se a voz que seria do delegado. No painel, a transcrição: “Pode ver com calma, que eu não vou deixar esses documentos. Tem sonegação, tem lavagem, tem evasão de divisa, tem outros crimes [...]”.

A seqüência se completa com novas imagens dos três homens no El Tranvia e a voz de Tralli, ainda em off: “Logo em seguida, o assunto passa a ser propina. Hugo Chicaroni fala em 1 milhão de dólares”. E retornam os painéis. No de Chicaroni, lê-se: “Já que ele ofereceu 500 mil, pede 1 milhão de dólares, para ele chegar em 700, 800”.

A Trallicomédia de erros

A quantidade de erros factuais cometidos por Tralli é enorme. A hipótese deste repórter é a de que o colega da Globo recebeu as imagens e os áudios da PF sem muito tempo para fazer uma pesquisa maior.
Braz não se entregou à PF à noite, mas de manhã.
O CDP II de Guarulhos não é a “cadeia” que ele apresentou. O que Tralli mostrou foi uma das duas penitenciárias que ficam próximas à rodovia Presidente Dutra, às margens da avenida que sai da rodovia Ayrton Senna e segue para o aeroporto de Cumbica.
Tralli diz, duas vezes, que a filmagem do ato do suposto suborno é de um almoço, mas, na verdade, trata-se de um jantar.
Diz que Chicaroni e Braz se encontraram “uma segunda vez” com Ferreira, mas foi uma vez só.
A cena em que Braz, pela segunda vez, levanta-se, agora para voltar ao seu lugar inicial, é exibida como sendo o momento em que ele sai para ver os papéis. O instante em que Braz examina os papéis é outro: é aquele em que ele sai de seu lugar inicial, troca de lugar com Chicaroni, para sentar-se ao lado do delegado Victor Hugo, quando, então, pode ver os papéis que estavam sobre as pernas do delegado.

Pior que esses pequenos erros é a estrutura da montagem do noticiário. As imagens principais são do filme de 4 minutos e quarenta segundos do jantar de Braz, Chicaroni e Ferreira, vídeo feito pela Polícia Federal e entregue, de alguma forma, à Globo. É dele que foram tiradas – não se sabe se diretamente pela PF ou pelos editores da Globo – as seis seqüências que aparecem no JN de 14 de julho.

Porém, as conversas, que são reproduzidas como se tivessem sido gravadas nesse encontro dos três homens, não têm relação com as imagens.

Em uma dessas cenas, inclusive, isso fica evidente, devido a um absurdo. Chicaroni aparece tramando com Ferreira uma forma de elevar a proposta de suborno de 500 mil para 1 milhão de dólares. E é evidente que não fez isso à mesa, diante de Braz, que, segundo a PF, é quem daria o dinheiro.

Possivelmente, apenas uma das gravações é do jantar dos três: aquela de quando Ferreira diz que vai mostrar os papéis que tem. Para isso, pede a Braz que troque de lugar com Chicaroni e sente-se ao seu lado, porque os papéis, como conta Braz, estavam sobre suas pernas.

A locução de Tralli, como já vimos, no entanto, confunde as coisas. A imagem que Tralli apresenta como o “exato momento” no qual Braz vai ver os papéis é, na verdade, o instante em que Braz se levanta para retornar ao seu lugar, após já ter visto os papéis. Em nenhum momento ouve-se a voz dele. Nos painéis que transcrevem as falas, não aparecem sua imagem nem seu nome. O que transforma a matéria na denúncia de um suborno proposto por Braz é a montagem e a palavra do locutor, que sempre afirma: “Ferreira disse que...”, “Chicaroni disse que...” ou “Braz disse que...” O que não se sabe ainda é quanto da armação veio pronta da PF e quanto é contribuição própria da Globo.

Aqui, Raimundo Pereira parece ter se deixado levar pela conversa de Braz. A voz do emissário de Dantas não aparece gravada por um motivo simples, que está explicado na sentença do juiz De Sanctis, que o condenou:

Sua [de Braz] reprovabilidade deve ser acentuada, até porque o dolo foi de uma intensidade extrema, tanto é que parte da conversa com a autoridade policial Victor Hugo travava-se por escrito, a fim de não haver a possibilidade de captação de voz e de permitir a concretização do "negócio" espúrio a que se dispôs a intermediar de maneira tão importante e participativa” [cf. fls. 5033 – grifos apostos].

Pereira prossegue enumerando mais inconsistências da reportagem do Jornal Nacional e termina com interrogações:

A Globo fez esse tipo de cobertura por algum interesse? Quem são os interessados em considerar que os erros na privatização das teles brasileiras serão aplacados com a demonização de Daniel Dantas e das pessoas que estejam próximas a ele, como Braz?

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